sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

SEM CABEÇA NEM PÉ

Havia uma mulher em Portugal
de exagerada vocação naval.
O passatempo dela
era olhar caravela,
Só para não sair de Portugal.

There was a Young lady of Protugal
whose ideas were excessively nautical;
She climbed up a tree
to examine the sea
But declared she would never leave Portugal.

Esse e outros poemas aparecem no livro SEM CABEÇA NEM PÉ, uma tradução do poeta brasileiro José Paulo Paes para os poemas do inglês Edward Lear, com a maravilhosa ilustração de Luiz Maia.
Lear, que viveu no final do século XIX e era também ilustrador escreveu poemas e histórias de um imaginário que permite construir metáforas apenas por elas mesmas, sem nenhum sentido elíptico, nenhum julgamento ético ou moral.
Esse modo de pensar, que aparentemente parece não ter lógica, corresponde a um momento da evolução do pensamento humano e possui um raciocínio próprio, diferente daquele observado na fase adulta, que é marcado pela categorização, sendo assim, a criança reúne as diferentes fontes de apreensão do universo como forma identificação do seu entorno. Isso torna possíveis construções como “a lua é um pedaço de queijo que um anjinho coloca no céu durante a noite”. A isso dá-se o nome de sincretismo.
Meu primeiro encontro com a obra de Lear foi quando li SEM CABEÇA NEM PÉ, mas depois eu procurei mais histórias dele no PROJETO GUTENBERG e encontrei A BOOK OF NONSENSE, histórias ainda mais loucas. Os temas apresentados são os mais variados: um homem com um nariz tão grande que virou poleiro de pássaros, outro que tem uma boca enorme capaz de engolir sua comida com prato e tudo, entre outros igualmente ilógicos e divertidos.

There was a Old Man of the North,
Who fell a into a basin of broth;
But a laudable cook
Fished him out with a hook,
Whish saved the Old Man of the North

Havia um velho senhor lá de Treze Tílias,
Que caiu num caldeirão de sopa de ervilhas;
Mas uma louvável cozinheira
Pesco-o com a escumadeira,
Salvando assim esse senhor de Treze Tílias
(tradução de José Paulo Paes)

O que mais chama atenção nesses poemas é que não há uma tentativa de explicação sobre a convivência e possível aberração dos enredos que abordem, exatamente como a criança faz.
Lear é o pai do estilo nonsense e influenciou escritores como Lewis Carol, autor de ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS, que inclusive é uma ótima idéia para um post.

sábado, 3 de dezembro de 2011

_não contem com o fim do livro

Um amigo me indicou esse livro porque sabe que gosto de livros, do Umberto Eco e do Jean Claude Carrière. Eu poderia até não gostar de nada disso e ainda assim me sentiria completamente atraída por _NÃO CONTEM COM O FIM DO LIVRO e este post destina-se a explicar o porquê.
O livro é um diálogo entre dois pensadores absolutamente singulares: de um lado um escritor, bibliófilo e filósofo , autor do romance histórico que se tornou best seller na década de 80, O NOME DA ROSA (lembra?); do outro lado, um contador de histórias, roteirista, escritor, diretor e ator. A estrutura é uma conversa mediada pelo jornalista Jean-Philippe de Tonnac, mas acredito que o mediador esteja mais na posição de deleite do que propriamente para fomentar algum tipo de diálogo. A pergunta de onde tudo parte é: o livro impresso irá sucumbir a alguma estrutura digital?
A resposta poderia ser simplesmente não: assim como o rádio não “perdeu” para a televisão, a televisão não “perdeu” para o cinema, o livro também não “perderá” para a internet ou similar. Apenas haverá uma mudança de apreciação da mídia. Mas estamos falando de dois homens que passaram a vida debruçada na leitura de livros e do mundo, vivendo e escrevendo sobre suas impressões.
Somos surpreendidos com um olhar impressionante sobre o registro da história e sua importância, sobre o desenvolvimento humano com relação à comunicação. Quando chegam ao tema internet o que interpelam não é sobre a mídia em si, mas sobre a relação humana com a investigação e com a verdade. Carrière indaga:
Mas se agora dispomos de tudo sobre tudo, sem filtragem, de uma soma ilimitada de informações acessíveis em nossos monitores, o que significa a memória? Qual o sentido dessa palavra? Quando tivermos ao nosso lado um criado eletrônico capaz de responder a todas as nossas perguntas, mas também àquelas que não podemos sequer formular, o que nos restará para conhecer? Quando nossa prótese souber tudo, absolutamente tudo, o que devemos aprender ainda?
Ao que Eco responde:
A arte da síntese.
E ele está obviamente se referindo à síntese hegeliana, aquela que parte da investigação, compreensão da tese, formulação e confronto com a antítese.
O recado é que, assim como a leitura do livro, a verdade não é apenas o que é expresso na Wikipédia, mas antes é uma orientação que precisa ser lida, revista e confrontada até a exaustão com outras tantas bases de informação.
A internet mudou completamente nossa maneira de pesquisar. Nós, que nascemos antes da década de oitenta, sabemos muito bem o que isso quer dizer, porque tínhamos a Barsa ou a Enciclopédia Britânica ocupando um lugar que agora é da Google. Mas a mudança fundamental é que agora, quando buscamos um verbete, aparecem milhões de resultados possíveis, o que antes se restringia a uma única verdade cedeu espaço à dúvida.
Procuro, por exemplo, a palavra síntese e encontro 11.600.000 possibilidades em 0, 06 segundos. As respostas passam por um site de notícias sobre a luta dos trabalhadores da educação na rede pública de Sergipe a um Fórum no Yahoo sobre resumo, síntese e resenha de livros. A compreensão exata daquilo que estou buscando é fundamental para a leitura de qual o resultado devo seguir. O leitor da internet, diante das infinitas possibilidades, precisa paulatinamente tornar-se mais letrado, mais arguto, mais seletivo, num processo que evolui na mesma velocidade que a tecnologia. E como realizar essa conquista? Debruçar-se sobre os antigos autores, lê-los, relê-los e tomar deles a orientação necessária para a elaboração das perguntas que conduzem a verdade. A busca é uma ciência a ser estudada e reverenciada. E a orientação de como isso é feito advém daqueles que se ocupam e ocuparam a relatar nos livros o seu processo.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

O QUE DIZER E O QUE NÃO DIZER NA FRENTE DAS CRIANÇAS

Esse é um tema bastante controverso: o que dizer e o que não dizer na frente das crianças?
Bem, ao menos que você tenha conseguido construir uma redoma e afastado essa criança de todo e qualquer contato com o mundo externo, ela já viu e ouviu em poucos anos de vida, muito mais que você durante toda a sua infância, aliás, acredito que até mais que a infância.
Sei que vou parecer uma velhinha falando, mas, no meu tempo, esse acesso desenfreado à informação não existia. E eu nem sou tão velha assim, mas nasci antes do telefone ser uma coisa popular, de todo mundo ter televisão em casa, no tempo em que o vídeo-game mais moderno se chamava tele-jogo e eram apenas dois pauzinhos que batiam em uma bolinha, numa velocidade que hoje um bebê de seis meses ia achar irritante de tão lenta, mas, na época, era o máximo!
Cresci durante a ditadura militar e muitas coisas não podiam ser ditas em casa, aliás, em lugar algum, porque alguém podia desaparecer se dissesse algo considerado subversivo. Nem sei se essa palavra existe ainda.
Por isso havia todo cuidado com o que era dito na frente das crianças. Assistia-se pouco à televisão, ouvia-se bastante rádio e conversava-se muito. A voz era o principal condutor de notícias, então ficava fácil selecionar os assuntos adequados às crianças. Lembro-me de uma expressão usada pela minha mãe quando queria conversar algo “de adulto” com as minhas tias: “tem pés descalços…”, isso significava que eu estava ali e, como tinha o péssimo hábito de divulgar as conversas, era usada a senha para não continuarem o assunto, ou melhor, continuarem na hora em que eu não estivesse por perto.
Século XXI chegou e a principal via de comunicação é a visual. Você até pode desligar a televisão, mas há o computador, o celular e o mundo. Há o grupo de iguais, os celulares e ipods dos amigos, as redes sociais e tantas outras mídias inimagináveis no século passado.
Afinal, o que dizer e o que não dizer na frente das crianças? Tudo. Tudo pode ser revelado desde que se leve em consideração que a criança é um cidadão e merece ser respeitado como tal, que tem o seu tempo de apreensão das coisas e que pode ter o acesso à informação, mas não tem vivência para decodificar. Por isso mesmo, quem tem uma criança em casa deve ter a generosidade de conversar com ela sobre o mundo que a cerca, sobre aquilo que ela vê e vive. Mas como cidadã que é, acima de tudo, a criança tem que ser ouvida e considerada porque ela dará boas pistas sobre o momento – e  a forma – que determinados assuntos poderão ou não ser aprofundados.
Não se pode ter medo dos temas que eram considerados tabus no século passado porque eles estão aí, espalhados no cotidiano: morte, medo, violência, diversidade enfim, todos aqueles que outrora os adultos calavam em frente aos “pés descalços”.
Acabei de ser apresentada a um livro que devorei em uma hora: FIGURINHA CARIMBADA, do brasileiro Márcio Araújo. É um livro em que crianças contam suas histórias de heroísmo da vida cotidiana, numa narrativa simples, sem fantasias, mas com a clareza necessária para que os leitores formulem suas questões e entrem em contado com o seu próprio heroísmo. Há o João que perde a mãe em um acidente de carro; o abastado Luiz Felipe que passa a ter uma imagem diferente do conceito de família quando se torna amigo do filho da empregada; o Ícaro, um menino que gosta de fazer teatro e, durante um show de fogos de artifício, fica cego, enfim são histórias que contam sobre a dor e a delícia de se estar no mundo. Um livro que fala de muita coisa difícil de ser dita, mas que alguém precisa falar. E o Márcio faz isso com maestria.
É importante que haja histórias de príncipes e fadas, mas há muito a ser dito além da fantasia.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

EI, TEM ALGUÉM AÍ?

Ontem eu estava assistindo à TV Escola e me despertou especial interesse o comentário de uma professora que dizia que a literatura para crianças sempre foi considerada como um gênero menor, no entanto, o livro infantil requer uma série de cuidados que o livro dito para adultos não precisa ter.
Pus-me a refletir…
Sou uma leitora voraz, costumo debruçar-me até sobre manuais e bulas. Conservo até hoje um hábito adquirido na adolescência: a leitura de dicionários, portanto, tenho certo cabedal para avaliar a questão. Parafraseando Humberto Mariotti, vou evitar o automatismo do simplesmente concordar e discordar e partir para a complexidade que essa afirmação carrega dentro de si.
A literatura para crianças é introduzida na vida de seu público alvo em um momento crucial de formação de valores éticos e compreensão de princípios morais. Momento de desenvolvimento da crítica e da autocrítica e, não menos relevante, de formação do gosto estético e apreciação da arte, literatura incluída. Tendo isso como perspectiva, é de se esperar que haja cuidado com o que é lido para as crianças, mas esse não é um pensamento tão simples.
Não é função do livro ensinar as crianças, ele é uma ferramenta de diálogo entre o mundo da criança, aquilo que concerne ao seu interior e também ao seu círculo próximo de informação (pais, parentes, professores, amigos, TV, internet etc) e um mundo mais longínquo, com acontecimentos que não façam parte desse universo, mas que, de alguma forma, comuniquem-se com eles.
Posto dessa forma percebe-se a amplitude de “agentes educadores” que, juntamente com a literatura, participam da formação dos padrões infantis. Portanto não apenas o livro mas tudo que se apresenta às crianças deve ter um cuidado especial.
Mas o que fazer com crianças que estão no mundo, expostas às várias mídias existentes no século XXI, e que se ampliam dia-a-dia, trazendo informações que fogem completamente ao controle de pais e educadores.
Uma boa solução é formar pequenos questionadores, criar dentro das crianças um espírito de curiosidade que as provoque a criar uma pergunta a cada elemento novo que se apresente. Não aceitar cegamente aquilo que vêem como se fosse a verdade, porque a verdade é um entrelaçado de diversos elementos.
Recentemente li para o Pedro uma obra que trata isso de uma maneira sutil e absolutamente profunda: Ei! Tem alguém aí? (Editora Companhia das Letrinhas), de Jostein Gaarder, também autor de O MUNDO DE SOFIA.
Há uma máxima que ele expõe no livro que considero ponto de partida não apenas para a formação de pequenos leitores, mas para a vida como um todo: as perguntas são mais importantes que as respostas.
O livro narra a história do menino Joakim com outro menino, muito parecido com ele, só que vindo de um outro planeta, de nome Mika. O primeiro encontro dos dois já promove uma série de reflexões sobre a relatividade. Mika está pendurado, de cabeça para baixo em uma árvore e pergunta a Joakim porque ele está de cabeça para baixo. Joakim acha a pergunta estranha, mas Mika reflete:
Quando duas pessoas se encontram e uma delas está de cabeça para baixo, não é tão fácil dizer qual delas está na posição certa.
É disso que se trata, a formação de leitores não se dá na apresentação do livro, mas na apresentação do mundo. Crianças com espírito de investigação podem ler qualquer coisa “boa” ou “má” que saberá dizer com total tranqüilidade: “do meu ponto de vista, isso aqui está de ponta cabeça”

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Uma coisa puxa a outra...

Na semana passada chegaram  aqui em casa os livros da COLEÇÃO ITAÚ DE LIVROS INFANTIS. Não sei se conhece a iniciativa, mas basta se cadastrar no site do Itaú, preencher um cadastro e solicitar os livros gratuitamente. Mas essa ação é sujeita a disponibilidade no estoque. Esse é o segundo ano dessa campanha e eu e Pedro estamos acompanhando desde o início. Os livros do ano passado eu doei para um orfanato porque havia essa recomendação de que os livros não poderiam ficar parados e tinham que atingir o maior número possível de crianças. Eu e Pedro lemos até cansar e depois, doamos.
Bem, os livros chegaram e pusemo-nos a saborea-los. São três títulos: CHAPEUZINHO AMARELO, de Chico Buarque, com ilustrações de Ziraldo; ADIVINHA QUANTO, de Sam Bratney com ilustrações de Anita Jeram e A FESTA NO CÉU - UM CONTO DO NOSSO FOLCLORE, contado e ilustrado por Angela Lago. É sobre esse último título que eu vou escrever.
Eu conhecia esse conto há uns cem anos (hipérbole), mas eu conhecia as versões do Silvio Romero e do Câmara Cascudo. Aliás, vou abrir um parêntesis: outro dia eu peguei uma nota de cinqüenta mil cruzeiros e deu, por um lado, um orgulho de um país que homenageia seus intelectuais, mas, por outro, uma certa vergonha daquela ser uma nota sem nenhum valor, mesmo quando estava sendo impressa. Fecha parêntesis porque essa é outra história.
Muito bem, pus-me a ler o conto pelo olhar de Angela Lago, mas o conto em si — que conta a história de uma Tartaruga muito esperta que vai a festa no céu escondida dentro do violão de um Urubu-rei — não foi o principal alvo da minha atenção. Este post chama “Uma coisa puxa a outra…” por esse motivo.
Eu costumo ler tudo que está escrito no livro: editora, ano de edição, direitos de publicação, enfim, tudo mesmo e, na contra-capa havia uma informação muito interessante sobre Angela Lago:
Foi uma das primeiras ilustradoras a usar o computador para desenhar e uma das primeiras a fazer seu site na internet.
Lendo isso, o que eu fiz? Obviamente fui atrás do site de Angela.
Esse post é um convite a visitar o delicioso site de Angela Lago, uma senhorinha, nascida no pós-guerra que se diverte contando e desenhando histórias. O site é muito divertido e bem interativo. Há várias histórias contadas, jogos e ilustrações muito bonitas.
A propósito ela dá um depoimento muito bonito, com seu delicioso sotaque mineiro, no site do Itaú Social, o mesmo que você acessa para receber os livros, dizendo que "quer escrever com a sua voz infantil porque é a voz que conta as metáforas mais inusitadas, que tem uma poesia mais espontânea" que sua voz de adulta.
Eu, particularmente, considero que ter um filho pequeno é ganhar um convite para assistir, sentada no gargarejo, um desfilar de sabedoria.
Leia muito para uma ou algumas crianças, mesmo que estejam dentro de você.

domingo, 20 de novembro de 2011

O nascimento da cultura de dominação, segundo Riane Eisler

É comum incorporarmos dados que são inerentes à cultura como parte da natureza humana, mas estamos falando de instâncias distintas, a nossa natureza diz respeito diretamente ao nosso instinto de sobrevivência individual e de preservação da espécie. Mas como foi que construímos uma cultura que nos desloca da nossa natureza, uma vez que atuamos no meio de forma tão violenta?
A socióloga Riane Eisler, em seu livro O CÁLICE E A ESPADA (Editora Palas Athena) dá uma boa pista para reconhecermos esse processo.
Em seu livro, Eiler nos apresenta que quando os primeiros homens começaram a se questionar sobre de onde viemos, possivelmente ligaram nossa origem na terra ao ventre das fêmeas, uma vez que o fenômeno do parto se instaurava como uma analogia a própria criação, daí ser absolutamente compreensível que a primeira imagem humana cultuada fosse de uma Deusa.
“De fato, personificado pela Deusa, o tema da unidade de todas as coisas na natureza parece permear toda a arte do Neolítico, pois neste período o poder supremo que governa o universo era uma Mãe divina que dava vida a seu povo, oferecia a ele alimento material e espiritual, e, mesmo na morte, não deixava de receber seus filhos de volta a seu ventre cósmico.”
Os kurgan, povos indo-europeus ou arianos, o povo que será referência futura à Hitler, invadem as áreas próximas aos rios e trazem seus deuses masculinos da guerra e das montanhas. Esses povos desenvolveram a noção de propriedade, ao longo dos anos, pela hostilidade do ambiente em que viviam, frio, infértil e montanhoso.
“O valor supremo reinando do cerne do sistema dos invasores era o poder tirar a vida, e não o de dar a vida.”
A espada torna-se o símbolo do poder supremo, do secular e do sagrado.
A visão que se aprende na escola é de que estes povos guerreiros são o berço da civilização ocidental, ignorando completamente todo legado trazido por, pelo menos, 4000 anos de civilização anterior.
Mas não foram apenas a guerra e um governo dominador, punitivo e hierárquico, os instrumentos de fiscalização ideológica da androcracia, também a arte coloca-se a serviço dos “novos tempos”.
Toda mitologia, filosofia e legislação, da antiguidade clássica até o cristianismo, são voltados a fortalecer e legitimar a visão do patriarcado.
A revelação espiritual, que antes estava nas manifestações mais simples da natureza e, portanto, acessíveis a todos, tornam-se exclusividade de sacerdotes que “agora difundiam a palavra divina – a Palavra de Deus magicamente comunicada a eles -, tinham o apoio de exércitos, cortes de justiça e carrascos. Mas seu maior suporte era espiritual e não temporal. Suas armas mais poderosas eram as histórias e rituais “sagrados”, os decretos religiosos através dos quais sistematicamente inculcavam nas pessoas o medo de deidades terríveis, remotas e inescrutáveis” (pg. 138), que tinham que ser obedecidas.
Esses sacerdotes e as publicações que posteriormente eles utilizaram como veículo doutrinador tinham, além de espalhar a nova ordem a ser obedecida, apagar os vestígios da cultura da Deusa, relegando-a a um plano inferior e equívoco. Não é à toa que no gênesis, a serpente (símbolo da Deusa), aconselha Eva (a primeira mulher) a desobedecer as ordens de um deus masculino. A árvore do conhecimento também era associada à Deusa e comer de seus frutos traria a revelação. Não é sem propósito que aí esteja a origem de todo o pecado e que as mulheres passem a herdar dessa desobediência a dor e a submissão aos homens.
Juntamente com a cultura da espada emerge um pensamento que a justifica e empodera: o conhecimento é mau, o nascimento é sujo e a morte é sagrada. O símbolo máximo da religiosidade cristã é a martirização pela tortura, o sacrifício e a morte na cruz.
O pensamento que se apodera é da androcracia, neologismo empregado para designar o governo de homens, que pode se opor à gilania, que pode ser traduzida como um sistema de funcionamento que obedece aos princípios femininos.
A gilania não é portanto um governo em que a ordem seja de mulheres, como se dá na oposição entre o patriarcado e o matriarcado, mas em uma forma de organização em que a parceria e o cuidado são os fundamentos.
A androcracia é a ideologia por trás da cultura judaico-cristã, e posteriormente da islâmica, no entanto, o advento de Jesus, gentil e compassivo, acaba por ser uma marca gilânica em meio as normas ocidentais. O novo testamento traz registros contundentes tanto da filosofia cristã quanto do modus operandi daquele que seria o salvador. Não foi por acaso que foi, como toda ideologia ligada à parceria, assassinado, a fim de que seu exemplo promovesse temor entre seus seguidores.
A valorização de Maria Madalena, no novo testamento, que, embora seja abordada como impura, não deixa de ser uma figura emblemática da religiosidade cristã, é uma prova de que o papel da mulher, aos olhos de Jesus, era fundamental para nosso religare. Há indícios de que Maria Madalena foi um importante pilar do cristianismo, após a morte de Jesus.
Na realidade, ao longo da história, há flutuações entre a cultura gilânica e a androcrática. Governos que adotam posturas mais “femininas” cujo enfoque dá-se pelo bem comum em oposição á grande tomada de poder. Esse movimento acontece relativamente como uma onde. De qualquer forma, o que tem prevalecido nos últimos 6000 anos é a cultura da espada, com alguns momentos de inspiração de parceria.
O século XX nasce com uma égide do cuidado: a luta pelos direitos humanos, pelo direito ao voto, equiparação salarial, a busca de posturas mais sustentáveis, demonstram que a humanidade começa a mostrar sua natureza ligada ao cuidado não apenas com seu semelhante, mas consigo próprio e com o planeta.
Há uma recodificação do panteão que, a partir dessas influências, começa a obedecer uma hierarquia. Um Deus masculino belicoso e punitivo prevalece a todas as demais divindades. Ele se torna inatingível, e não mais parte natural da existência, e sua vontade prevalece aos humanos.
Essa ordem cooperativa é abalada quando os nômades que vagavam pelas áreas periféricas e mais cobiçadas do globo começam a se deslocar em busca de pastagem para seu gado. O elemento comum a todos esses povos é o modelo dominador de organização social

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

AONDE VOCÊ VAI, PAPAI?

Ontem, 17/11/2011, a presidenta Dilma Roussef lançou o Plano Nacional da Pessoa com deficiência promovendo uma série de ações que contemplem essa população.
Lembrei-me então de um livro chamado AONDE VOCÊ VAI, PAPAI? (Editora Intrínseca), do francês Jean-Louis Fournier.
É o relato da experiência de um pai com seus dois filhos com deficiências motoras e neurológicas.
É um livro muito difícil de ser contado por seu tom absolutamente desconcertante. 
Nosso álbum de família tem pouquíssimas fotos.
Não temos muitas imagens deles, nem vontade de mostrá-los. Uma criança normal é fotografada de todos os ângulos, em todas as poses, em todas as ocasiões; nós a vemos quando apaga a primeira vela, quando dá os primeiros passos, quando toma o primeiro banho. Olhamos para ela enternecidos. Acompanhamos passo a passo seus progressos. Mas não temos vontade de acompanhar a ruína de um menininho deficiente.
O livro é escrito em primeira pessoa, como se você estivesse lendo uma carta onde o autor revela a sua incapacidade de superar a sua decepção em ter se tornado pai de Mathieu e Thomas. Não há espaço para chavões de superação ou de olhar apreciativo sobre a deficiência. Ele é cru, queria ter tido dois filhos normais para ter uma vida de pai normal. Ele ironiza isso dizendo que nunca terá que ter as preocupações de outros pais sobre o futuro profissional dos filhos, a adequação da conduta, as más companhias.
Ainda estamos engatinhando no caminho do olhar sobre a deficiência, porque também estamos longe de valorizarmos a diversidade. Tudo que é diferente precisa ser eliminado, amassado, esticado, lipoaspirado, torcido para que enfim caiba numa forma única daquilo que é considerado normal.
E o normal é um conceito tão inatingível que ninguém, eu digo ninguém mesmo (nem a Gisele Bündchen) consegue bater no peito e dizer tranquilamente: eu sou uma pessoa inteira, não há nada em mim que deva ser mudado.
Há uma centena de livros que dizem tudo que você precisa fazer para ser mais parecido com aquilo que as pessoas querem que você seja. As mesmas pessoas que lêem os livros e também querem ser aquilo que talvez você espere delas. É uma busca constante por uma perfeição que simplesmente não existe. Fournier não está fora disso. Ele busca um par de filhos que sejam encantadores como as crianças do comercial de margarina, mas eu preciso dizer uma coisa: o meu filho, que é encantador, não é como as crianças do comercial de margarina, às vezes ele faz coisas que me tiram do sério, que me surpreendem, que me irritam, que me desassossegam.
Porque a vida é desassossego, é transformação. Mas não é essa a nossa carga cultural.
Há uma indústria muito grande movimentada pela insatisfação humana e não me refiro apenas às roupas, cosméticos e cirurgia plástica. A ocupação que fazemos do planeta já é a prova da nossa insatisfação com a natureza: temos que colocar cada vez mais concreto, tornar o solo cada vez mais impermeável e construir casas cada vez mais altas apenas para ter uma bela visão da natureza.
Não precisaríamos de um plano de governo específico para pessoas com deficiência se simplesmente as considerássemos aquilo que são: cidadãs.
Às vezes a gente dá uma volta bem grande para chegar num ponto muito próximo.
Pois é, aonde nós vamos, papai?
Esse é o tom.